domingo, 4 de outubro de 2009

Não Há Quase Ninguém Em Que Possamos Confiar

Se pensarmos nisso, olharmos para o passado ou tentarmos recordar-nos, é provável que acabemos por descobrir que é raro existir alguém que não ponha um ideal ou uma entidade bastante impessoal e abstracta acima das suas relações com as outras pessoas.
Esse nobre conceito é reiterado espontaneamente em todos os tipos de situações e não só é aceite como também desperta reacções elogiosas e de admiração. As pessoas que o manifestam são geralmente aplaudidas como exemplos de empenho, abnegação, altruísmo e até lealdade.
É muito provável ouvi-lo também, com variações, da boca de futebolistas, políticos e guerrilheiros e, obviamente, de nacionalistas e religiosos de todas as crenças, cuja razão de ser é essa mesma.
Eu, por outro lado, considero-a uma afirmação perturbadora, para não dizer aberrante, e faz-me imediatamente desconfiar do seu autor. Essas palavras implicam sempre que qualquer coisa, frequentemente algo que não existe ou é, no máximo, intangível ou invisível, está acima de tudo o resto e, naturalmente, das outras pessoas: Deus ou a Igreja, a Espanha, a Catalunha, a empresa, o partido, a ideologia, o Estado, a revolução, o comunismo, o fascismo, o sistema capitalista, a justiça, a lei, a língua, esta ou aquela instituição, uma escola, um jornal, um banco, a coroa, a república, o exército, um nome, este ou aquele canal de TV, determinada marca, o Barcelona ou o Real Madrid, a minha família, os meus princípios, o meu país.
Tudo, do grandioso ao trivial, pode ser considerado acima de meras pessoas e os que aderem a essa crença não hesitam em sacrificar ou trair indivíduos em nome daquilo que consideram "sagrado" ou "a Causa", sejam eles um ideal, uma quimera ou, mais provavelmente, uma fantasia incorpórea.
A afirmação absolutista aplica-se a tudo o que excite a fantasia do idiota do momento: "o ancestral povo basco", o "Rule Britannia," o "Deutschland über alles", a "grande mãe-pátria russa" ou o departamento do Tesouro, o "The Times", o "Le Monde", o Manchester United, a Juventus, a monarquia, a Constituição, a BBC, o papado, a revolução cultural, não esquecendo, claro, "o povo soberano" e o nome de qualquer das empresas multinacionais ou locais.
Esta expressão é normalmente rematada por outra semelhante, ainda mais explícita: "O povo passa e as instituições ficam" - como se estas, da Igreja ao Atlético de Bilbao, não fossem produto do trabalho ou da invenção das pessoas e não existissem, de facto, para as servir em vez do contrário.
A verdade é que há já demasiados séculos que somos encorajados a acreditar que estamos todos ao serviço de algo intangível cuja perpetuidade tem precedência sobre nós. Não é por isso assim tão estranho que essas afirmações categóricas e vazias gozem de tão magnífica reputação, nem que aqueles que deixam de as subscrever sejam tratados como se tivessem peste.
Quer isso dizer que não está pronto a sacrificar tudo pela empresa? Que é um soldado que não está pronto a morrer pelo seu país, sejam quais forem as circunstâncias? Um revolucionário que se recusa a trair os vizinhos? Um crente que opta por renunciar à fé em vez de aceitar o martírio? Um futebolista que prefere aceitar um pacote financeiro suculento a ficar no clube que o formou? Eis exemplos de um egoísta, um cobarde, um vira-casacas, um apóstata e um interesseiro. Qualquer pessoa que não ponha algo acima de si própria, acima dos outros e acima dos seus sentimentos é alvo de insultos e desprezo. No entanto... sinto-me muito mais seguro e confortável na companhia daqueles a quem falta essa lealdade superior, que nunca põem uma abstracção acima das suas preocupações com os que lhe são próximos. E que só se virarão contra mim devido a qualquer coisa que eu tenha feito e não em nome de um dogma, crença ou ideal.

Mais ainda: elas são as únicas pessoas em quem confio. Por outro lado nunca confiaria num líder religioso ou político, num soldado ou num nacionalista, nem mesmo num crente ou num militante ou num patriota oficial porque sei que qualquer deles estaria pronto a trair-me ou sacrificar-me.
Se chegássemos a esse ponto, eles seriam os vassalos e apoiantes incondicionais daquilo que puseram acima de tudo o resto, mesmo que desaprovem o comportamento dos que encarnam esse ideal. Esse sentimento está tão difundido que acho que não há quase ninguém em quem possa confiar. Visto por esse prisma, o leitor também verá - se pensar nisso, olhar para trás ou tentar recordar - como são muito poucas as pessoas em quem pode confiar.

Javier Marías é dos mais importantes escritores espanhóis da actualidade. Filho do filósofo Julián Marías Aguilera, nasceu em Madrid a 20 de Setembro de 1951. Aos 17 anos publicou o seu primeiro conto num jornal de Barcelona. Colunista do diário “El País”, escreveu romances como “Coração tão Branco” ou “Amanhã na Batalha Pensa em Mim”.

Jornal i

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